Hoje eu falo

Bernardo Lopes
3 min readApr 16, 2021

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Photo by Ash Gerlach on Unsplash

Corri, mas, ainda assim, perdi o ônibus. Cheguei um pouquinho mais tarde do que o costume no terminal e fiquei pensando se tinha perdido a chance de encontrar com ela. Não era todo dia que isso acontecia, mas normalmente se eu chegasse até umas 9am, conseguia fazer a viagem até o trabalho em bela companhia. Do Centro até o meu ponto levava uns 40 minutos. Pouco tempo frente 24 horas, mas costumava ser a melhor parte do meu dia, mesmo que a gente não se falasse.

Nem precisava. A ligeira troca de olhar diária era suficiente para mim. Um mirar daqueles olhos castanhos claros era como flecha de fogo para o meu coração endurecido por um término recente. Eu precisava daquela pequena chama diária que só Carolina conseguia criar.

Carolina: esse era o nome dela. Ela mesma nunca me disse isso, mas foi denunciada pelo bordado rosa em seu jaleco, uma vez. Fiquei feliz quando vi que não se escrevia com “K”. Não gosto muito do nome escrito dessa maneira, acho agressivo. Do jeito que é fica mais singelo, igual ao sorriso dela, que se abre timidamente poucas vezes.

Não demorou muito para o ônibus chegar. Normalmente, comemoraria por não ter mais que ficar esperando em pé, mas precisava vê-la naquela manhã. Fui salvo pela falta de profissionalismo do motorista, que mesmo atrasado, desceu para bater um papo. Ganhei um tempinho a mais. Ouvi os burburinhos da fila que havia se formado atrás de mim, mas dessa vez não me juntei ao coro. Era minha chance de ver Carol.

Isso não fazia o menor sentido. Sai um ônibus a cada 15 minutos alí. Ela poderia ter pego um anterior ou estar bem atrasada, ou quem sabe até doente e nem viria. Eu me apegava a uma esperança bem fraca e ainda assim valia a pena, porque era a única que eu tinha.

O que sobre depois do fim? Tantos planos, sonhos, uma vida imaginada que simplesmente some de um dia para o outro. Um vácuo se cria na estrada a frente e que em alguns momentos você nem sabe se está caminhando ou parado. Tudo é igual, mais do mesmo. Nada faz sentido, nada faz sentir. Ela se tornou a torre de luz no meu horizonte. Não importava o porquê, ela me fazia andar.

Enfim, o motorista subiu novamente. Tava na hora. A minha primeira conversa com Carol esperaria mais um dia. Não era tanto, já que fazia 2 meses desde a primeira vez que nossos olhares se cruzaram. Dei uma última olhada no terminal: vendedores, despachantes, pessoas com sono, nenhum nariz arrebitado e cabelos dourados na multidão. Aceitei a derrota e me virei para subir no ônibus, enquanto vestia minha mochila.

Desajeitado como sempre, esbarrei na pessoa de trás e automaticamente me virei para pedir desculpas. Fiz isso muito rápido para não enrolar a fila, mas a estratégia acabou não funcionando, porque eu tive que voltar. Mesmo que de relance, aquele olhar castanho claro acalentou meu coração. Era ela. Séria, sonolenta, descabelada e linda. Por estar perdido em pensamentos, não a havia visto atrás de mim.

“Tudo bem”, ela respondeu. E essa foi a primeira vez que nos falamos.

Escaneei os seus olhos brilhantes, seu nariz arrebitado e sua boca carnuda em uma fração de segundos, enquanto pensava no que responder.

“Acho que já vi você por aqui antes, não é? Você salta lá na parada da escola”. Essa foi a melhor frase que veio na mente e, mesmo assim, ainda parecia bastante stalker. Não sei como ela responderia, se eu a tivesse dito isso. De tapa na cara a ignorar por completo, o mais provável é que eu recebesse um “é…”, seguido de um silêncio que iria à eternidade.

Preferi não falar nada. Entesourei aquele “tudo bem” e respondi com um aceno de cabeça. Quem sabe um dia eu tenho a chance de oferecê-la o meu assento, ou o banco do meu lado seja o único que reste para ela sentar. Eu não sei. Amanhã terei uma nova chance. E é só isso que eu preciso.

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Bernardo Lopes

Redator e roteirista por profissão. Escritor por invenção. Chato por vocação.